Relatos de um militar português

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O dia em que viu a morte à frente
19 de março será sempre recordado por Joaquim como o dia em que esteve para ser fuzilado. No campo de prisioneiros de Pondá, alguns portugueses começaram a perder a esperança de serem salvos, e três tentaram fugir, num camião, camuflados entre as sobras de comida que iam para o lixo. No entanto, foram denunciados por um furriel do exército português, que também estava detido, mas que viu naquela situação uma boa oportunidade para receber alguns louvores por parte das tropas indianas. “O furriel tinha a convicção de que ia praticar um ato heroico, e então denunciou os três fugitivos. A partir daí, desencadeou-se uma grande confusão. Foi chamado ao local o comandante do campo, o brigadeiro Sagat Singh, que queria que aceitássemos de volta o furriel, mas não o aceitávamos. Muitos de nós, garantiram que o matavam se o apanhassem”, relembra Joaquim.

Perante a recusa dos portugueses, o comandante reuniu todos os prisioneiros do campo e montou um autêntico aparato em seu redor. “Ordenou aos fuzileiros do exército indiano que nos apontassem as armas à cabeça. Ou aceitávamos o furriel, ou éramos todos mortos ali”, explica Joaquim. O momento foi de grande tensão. “Um barulho infernal”, salienta Manuel Passos. Foi então que um padre, o tenente capelão Joaquim Ferreira da Silva, saiu de uma das fileiras e pediu ao comandante que os perdoasse.

“Durante todo aquele tempo, não sabia o que me ia acontecer. Podia morrer a qualquer momento”. No entanto, a insistência do padre convenceu o chefe indiano. “O Joaquim Ferreira da Silva chegou mesmo a suplicar que o matassem a ele, mas que deixasse viver os restantes companheiros. Prostrou-se aos pés do general. Foi um autêntico herói”, louva Joaquim Costa. “Para nosso alívio, ao fim de algum tempo, lá nos deixou regressar às casernas, e mais tarde transferiu o furriel para outra caserna à parte”.

Felizmente para Joaquim, a compaixão da União Indiana falou mais alto entre o possível massacre coletivo e o perdão aos prisioneiros que, de orgulho ferido perante a denúncia auferida sobre os seus, preferiram a morte à submissão. Ainda hoje, sente os traumas daquele dia, e de todos os outros em que esteve preso: “O stress do pós-guerra é algo que nos marca para sempre. Nos primeiros anos não conseguia dormir em condições. Via sombras a pairarem sobre mim”, desabafa.

Cerca de um mês e meio depois, no dia 7 de maio de 1962, Joaquim e os companheiros foram libertados. “Adeus, campo maldito!”, pode ler-se num diário escrito por ele há mais de cinquenta anos. De Pondá, Joaquim foi levado para o aeroporto de Dabolim, na zona litoral oeste de Goa, e daí seguiu para Carachi, à época a capital do Paquistão. À espera dos portugueses, estava a Polícia Militar Portuguesa. “Fui o primeiro passageiro a desembarcar em solo paquistanês, naquela manhã de 8 de maio de 1962. Eram dez menos cinco. Almocei no aeroporto, e bebi uma fresca laranjada”, recorda, depois de ler mais algumas passagens escritas à mão no velho diário.

Após vários meses de cativeiro, Joaquim podia regressar finalmente à sua terra-natal. Embarcou no Vera Cruz, e nunca mais olhou para lugar nenhum do continente asiático. Ao fim de duas semanas de viagem, estava de regresso a Portugal. “Fomos completamente ignorados à chegada. Ninguém quis saber de nós”, lamenta.

E assim foi durante mais de quarenta anos. Só a 10 de maio de 2003 é que o governo português, pelas mãos do então ministro da Defesa Nacional, Paulo Portas, distinguiu Joaquim e cerca de outros dois mil antigos prisioneiros na Guerra do Ultramar com a Medalha de Reconhecimento pelos serviços prestados além-fronteiras.
Nessa cerimónia, Montez Coelho, outro militar preso em Goa depois do ataque das forças indianas, disse que Portugal tinha entendido finalmente “o enxovalho, abandono e ostracismo” a que os guerreiros portugueses foram submetidos durante décadas. Já Paulo Portas, afirmou que “não há pátria que projete o seu futuro se não se reconciliar com a sua memória”.

Além disso, o antigo ministro considerou ainda que o reconhecimento significou uma “reconciliação entre o Estado e a Nação” e que o sacrifício de todos os prisioneiros “não merece discussão, só merece respeito”.

Duarte Lago

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