Sarita a bailarina

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Acordei às seis da manhã, eram sete em Santander. Sem ponta de sono, fui à janela do pequeno Hotel Central, na Rua General Mola, paralela ao Passeio que ladeia o mar. Caía uma chuva miudinha e a rua estava escura e completamente deserta.

Preparei-me e saí. Pequeno-almoço só a partir das oito.

Ninguém na rua. A uns vinte metros do hotel, apenas uma mulher alta, elegante, espreitava os caixotes do lixo. De um deles retirou um guarda-chuva vermelho, fechado, que utilizou como bengala. Debaixo do outro braço trazia um guarda-chuva preto.

Apesar de sermos as únicas pessoas daquela rua deserta, silenciosa, estreita e comprida, a minha presença foi-lhe completamente indiferente quando me aproximei. A mulher parou frente a um painel de um pequeno centro comercial, tentando ler o que por lá estava escrito.

Longe de ser andrajosa, a sua indumentária denotava apenas o desgaste de alguns anos. Vestia um casaco castanho até meio da perna e uma saia verde que descia um palmo abaixo do casaco. Um pequeno chapéu preto luzia com a chuva. A tiracolo, uma grande carteira escura caía pelo flanco esquerdo. Os pés calçavam uns sapatos rasos, de cor baça, em desafio aos tacões da moda que conferem às mulheres metade da sua altura. Colada ao canto da boca, uma prisca queimada.

A dois metros da sua esguia figura, cumprimentei:
– Buenos dias!
A mulher olhou-me de relance, sem nada dizer, e estendeu-me o guarda-chuva vermelho que aceitei e agradeci.
– Não há nada aberto por aqui para tomar el desayuno?
Ela riu-se, mostrando algumas cáries que lhe sujavam o sorriso bonito, estendeu-me a mão e apresentou-se:
– Sara, la bailarina. Sarita.
– Encantado.
E sem deixar cair a prisca respondeu, com uma pequena gargalhada:
– A esta hora? Domingo? Ah!… Ah!… Ah!…
De repente, com ar sério, emendou:
– Verdad!… El hotel!
E apontou o meu hotel que se destacava na rua por três pequenas bandeiras e pela sua forte cor azul.
– Me pagas el desayuno?
– Si, por que no?
-Graaaaacias!

Aguardámos alguns minutos, em silêncio, debaixo de um beiral, até que os lentos ponteiros marcassem as oito. Ela cuspiu a prisca e entrámos no hotel. O rapaz, ainda ensonado, mas simpático, um tanto surpreendido pela minha inesperada companhia, indicou-nos a escada para a primeira planta.

A sala, pequena, mas confortável, toda decorada com velhos instrumentos musicais, estava vazia. Os clientes ainda faziam meia-noite. Comi um pão com manteiga e bebi dois copos de leite al tiempo. Sarita pediu café com leite, comeu com vontade, mas sem sofreguidão, um pão com manteiga, um pão barrado com compota, um croissant, pediu mais um pouco de café solo e foi buscar uma banana e uma maçã que meteu na mala.

Pela primeira vez, ergueu o rosto e olhou de frente para mim com um leve sorriso que me pareceu conter alguns laivos de felicidade. Era de facto bonita, tinha olhos verdes que me trouxeram à memória os peixes verdes de Eugénio de Andrade. Eram, no entanto, olhos vazios, sem transparências de vida, olhos que se perderam há muito para lá das órbitas. Algumas rugas vagueavam dispersas pelo seu rosto seco, à procura de fazerem ninho.

-Vamo-nos?
-Quando quiseres.
Já na rua, abriu a grande saca que me parecia um poço sem fundo e vasculhou, vasculhou, retirando um isqueiro. Remexeu mais uma vez e, resignada, encolheu os ombros:
– No hay… no hay!

Percebi e disse-lhe que não fumava, mas lhe daria dinheiro para comprar cigarros. Retirei da carteira uma nota de vinte euros que ela segurou delicadamente na ponta dos dedos. Beijou-me na testa, levantou os braços, esboçou um passo de dança, deu meia volta sobre si mesma e deixou-me com aquele adeus final da Liza Minnelli no Cabaret.

Só depois de ela ter desaparecido ao fundo da rua eu me dei conta que tinha nas mãos o guarda-chuva vermelho. Calma e solenemente fui restituí-lo ao seu legítimo dono, o caixote do lixo.

Adão Cruz

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