Se o meu T1 falasse: retrato de uma quarentena

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Como tanta coisa tem mudado. Heráclito de Éfeso, filósofo de 500 a.C., deixou-nos a seguinte reflexão: “Nenhum homem atravessa o mesmo rio duas vezes, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem.”. Curioso como as nossas rotinas, que se repetiam semelhantes há anos, de um momento para o outro, mudaram. Também o nosso modo de agir e as nossas prioridades mudaram. E nós? Se pararmos e observarmos, também nós.

Vivemos um tempo de isolamento, onde cada um vivencia o mundo a partir de sua casa. Pela primeira vez, tem sido esta, a nossa casa, a principal testemunha do que vai acontecendo nas nossas vidas. E se a nossa casa falasse?

“Muito tem acontecido, dentro destas minhas paredes. A Joana passou a estar cá mais tempo que o habitual. Começou por chegar mais cedo, depois das aulas, talvez. Aos sábados, ainda trabalhava no restaurante. Passou a viver cá aos domingos também, dia que ela dedicava a visitar a família. Um dia, a Joana deixou de sair de manhã para a faculdade. Continuava a sair para trabalhar por algumas horas. Até que deixou, também, de sair para trabalhar.

Nos primeiros tempos, a voz dos locutores dos telejornais enchia a casa toda. Nunca a Joana tinha ouvido tantas notícias. Eram de tom sério, alarmante. Ouviam-se sirenes de ambulâncias. E números, sempre muitos números.

As sextas e sábados à noite, que dantes eram cheias de amigos, música, fatias de pizza e garrafas de cerveja… agora eram para videochamadas. Pelo computador ou telemóvel, família e amigos se faziam mais perto. Nestas chamadas repetiam-se os tais números, as tais notícias… Na voz da Joana, notava-se o medo e a saudade.

Dias houve de uma enorme imobilidade. Pouco acontecia. Apenas o soluçar baixinho das lágrimas da Joana e da sua solidão.

No entanto, o tempo foi correndo e o pijama deu lugar a um fato de treino novo. Os ovos mexidos deram lugar a sopas de legumes e assados. O aroma doce de uma sobremesa nova. Livros empoeirados da estante foram abertos um a um. Ah, que gozo me deu vê-la usar a única varanda deste humilde T1! É à tardinha quando bate mais sol na vidraça.
Chegou por correio um tapete de yoga. A Joana ficava meia hora, só sentada, a respirar. Depois, lá se alongava muito, ao som de passarinhos e ondas do mar. Até o cão do vizinho a Joana passeava no quarteirão. Também a ferrugem da bicicleta tirou. E plantas? Encheu-me de plantas de interior, tal era a sua sede pelo verde.

Pergunto-me o que fará com que os seres humanos se reergam assim do chão. Ouço-a falar em esperança e gratidão. O restaurante há de abrir. As aulas hão de começar. Os abraços voltarão a nos aquecer. Por enquanto, a Joana aprende que parar não é morrer.”

Mariana Marques
*Interna de Psiquiatria da ULSAM

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