Sociedade e Política no Brasil: antecedentes das eleições de 2022

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Se as desigualdades socioespaciais de hoje no Brasil (territoriais, de classe, étnico-raciais e de género) não podem ser explicadas apenas pelo velho colonialismo português, importa ter presente o lastro do impacto histórico do racismo ocidental escravocrata e suas ideologias de base patrimonialista e patriarcal, de segregação étnico-racial e de controlo clientelar, cujas repercussões estão ainda presentes não só em Portugal, como de modo enraizado no Brasil contemporâneo. Com efeito, o Brasil conserva e reflete a herança de uma duradoura estrutura agrária latifundista e a supremacia duma burguesia dependente e rentista, compradora e financeira. Acresce a influência religiosa e instrumentalização política, outrora pela Igreja católica e hoje por pastores neopentecostais face aos mais pobres manipulados sob a trilogia ultraconservadora “Deus, Pátria e Família”, sob a qual espreita o fascismo que vem sendo naturalizado. 

A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 foi um  momento histórico de convergência de forças democráticas e consagração jurídico-política de direitos cívico-políticos, sociais e culturais num Estado de Direito. Apesar deste marco histórico, importa salientar os impactos trágicos em termos ambientais e humanos, tais como o agravamento da emissão de gases de efeito de estufa (GEE), o crescente uso de agrotóxicos e sobretudo os derramamentos de óleo nas zonas costeiras. Tal revela o modelo exportador de bens primários e matérias primas minerais (commodities), concomitante a um processo de desindustrialização nacional (10% do PIB) e reprimarização da pujante economia do agronegócio (2/3 do PIB), além do empolamento do setor terciário sobretudo informal. Porém, há a distinguir, após 1988, os diversos tipos de governos, que espelharam uma orientação ora mais conservadora e/ou neoliberal, ora mais reformista, social-democrata e/ou progressista: a primeira, embora com variantes, sob os governos de José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, com orientação de política mais favorável ao capital financeiro externo e interno. A segunda orientação, perante as enormes assimetrias sociais, sob ação de sindicatos e movimentos sociais nas décadas de 1980-90, proporcionou uma notável mudança entre 2003 e 2016,  sob os governos de Lula da Silva e Dilma Roussef, traduzida em diversas políticas públicas: infraestrutura e saneamento, criação de 22 milhões de empregos, aumento do salário mínimo acima da inflação, incremento de direitos laborais e previdenciários, segurança alimentar básica e eliminação da fome a mais de 30 milhões de brasileiros/as (bolsa-família), reforço do Sistema Único de Saúde (SUS), impulso de políticas de  habitação (Minha casa minha vida), investimento na formação, sobretudo no ensino superior (de 3 para 8 milhões de diplomados/as), aprofundamento dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, quilombolas e cidadãos/ãs negros/as. Por outro lado, além da criação de um fundo de reserva nacional, foi afirmada uma política desenvolvimentista com relativa diminuição de dependência face aos Estados Unidos, diversificação de parceiros comerciais, como os BRICS, e aliança com outros países latino-americanos. 

Em 2014 foi gizada a partir da CIA/Pentágono, com a conivência da burguesia mais reacionária e de partidos neoliberais, a preparação da destituição de Dilma Roussef, a operação LavaJato, uma armadilha judicial conduzida pelo Juiz Moro e pelo Procurador Dellagnol num fraudulento processo lawfare a inviabilizar a candidatura de Lula da Silva em 2018, forjando uma condenação sem prova, processo este do qual, juntamente com outros 25 processos, viria a ser absolvido.  Com o governo neoliberal de Michel Temer (2016-18) e sobretudo com a eleição do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro em 2018, com a intoxicação mediática pela Globo e televisões evangélicas e a tutela militar do general Vilas Boas ameaçando o Supremo Tribunal Federal (STF), Brasil conhece retrocessos enormes: perda de 172 biliões de reais e 4,5 milhões de desempregados na Petrobrás, na Odebrecht e noutras empresas brasileiras como resultado da operação Lava-Jato; Emenda de teto de gastos com cortes no SUS, na educação, na investigação; omissões e conivências com desmatamentos e queimadas predatórias na Amazónia, na Mata Atlântica e no Pantanal (2 milhões de hectares); privatizações e usurpações de terras públicas e invasões de terras indígenas; contrarreformas trabalhista e previdenciária, aumento de preços de bens básicos, empobrecimento (20 milhões de desempregados e 33 milhões de pobres), privatização da empresa pública Electrobrás; e, por fim, mas não menos importante, uma política de morte perante a pandemia, vista como uma ‘gripezinha’ mas com tese deliberada de imunidade de rebanho desde o início sem vacina (negação da ciência, escárneo de doentes em aflição com covid19, papel de caixeiro viajante a comercializar cloroquina); multiplicação de mortos por Covid19 por falta de oxigénio em Manaus. Se na primeira volta em 2 de Outubro este projeto necropolítico e de entrega de recursos do país ao capital teve forte expressão no Congresso e no Senado, resta a esperança da provável vitória de Lula a 30 de Outubro para o travar e instaurar um novo rumo no Brasil democrático com recuperação de direitos sociais

Manuel Carlos Silva

(*) Sociólogo, Professor universitário

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