Passou já muito tempo que vim para o mundo. Mas o tempo passa, foge tão depressa. Está a terminar mais um ano, com as suas alegrias e tristezas, com os seus nascimentos e lutos. Os dias, semanas, ou meses, desaparecem do calendário dependurado na parede ou colocado em cima da mesa do escritório, que no turbilhão da vida, esse percurso perde notoriedade. Mas é real, é palpável, sem dúvida! Mas a ocasião de que nos abeiramos paira, bem, acima do fluxo pardacento do quotidiano. Nela, cada palavra boa, ou má, cada sorriso, cada cântico, cada amargura, cada desilusão, tudo ecoa numa rima feliz ou desgraçada, colidindo com o que há de melhor ou de pior em cada um e em todos nós. Caminha, apressadamente, a chegada do Natal. Será legítimo perguntar, nesta quadra, se é a nossa verdadeira natureza que se desvenda ou se é antes por convenção, a partir do exterior, ainda que interiorizada, que nos comportamos de uma forma tão diferente daquela que o mundo, no resto do ano, parece exigir? Qualquer que seja a resposta de cada um, o que é certo é que são estes os dias da dádiva, da generosidade, do recordar com saudade ou azedume, os tempos de menino e moço, ficando pautados entre os melhores ou os piores do ano. Torna-se, no entanto, assinalar que no Natal, o que realmente importa, mas que tantas vezes tentamos ignorar ou esquecer, emerge, evidente, nítido, como gravado no brasão da humanidade, a troca sem tráfico dos afectos, o perdão sem cálculo das ofensas, o calor sem atrito da família, a alegria sem constrangimento das crianças.
Desloco-me à aldeia que me viu nascer, nesta quadra natalícia, numa romagem de saudade, a fim de visitar os restos mortais de minha mãe, que descansam, eternamente, à sombra dos ciprestes, naquele campo santo. Esta terra, para mim, torna-se inesquecível. Os rapazes e raparigas do meu tempo onde se encontram? A maioria, para não afirmar a totalidade, a caminhar pelo Além, encarregando-se, agora, em alumiar o globo terráqueo com as suas estrelas de presença. A rota da vida, com os anos que já decorreram, afastou certamente da memória das actuais gerações, os
tempos que por lá andei. E nesta corrida de recordações, ao passar junto da velha escola primária, ficam-me os olhos presos na meninice. Instantâneamente, dentro de mim, uma força oculta produz uma fantástica metamorfose, fazendo-me recordar tudo o que já fugiu. Vejo-me sentado no antigo páteo da escola, que em cada canto deixei cristalizar uma recordação, ou no terreiro, correndo e gritando. O eflúvio que a época exala traz-me à lembrança as brincadeiras ocorridas nas horas de recreio, que eram interrompidas com as palmas do professor Manuel Barbosa, a chamar para as aulas. O mestre levou-o o tempo e sumiu-o a terra. Homem sábio, bom, paciente e muito dedicado ao ramo das funções que desempenhava. A escola continua no mesmo sítio com o seu seio perene de gerações, que alguns talvez a tenham esquecido. As novas mentalidades converteram-na num museu do pão, mostrando o desenvolvimento das actividades agrícolas. Volto as costas, completamente, à velha escola. Comigo, fica, sempre, a certeza de que todas as peripécias de adolescente desenroladas em volta dela serão, para mim, eternas.
Dobrando, por completo, a esquina do caminho, lanço-lhe mais um olhar de despedida e gratidão. O meu espírito sente-se envolvido pelo eco longínquo dos divertimentos havidos na recreação… “Ó senhor barqueiro… deixe-me passar”…
Nota: – Esta crónica, por vontade do autor, no segue as regras do novo acordo ortográfico.
Foto: “Mensagens com amor”