A biografia literária não é um género que tenha acabado de nascer em Portugal. Longe de estar na primeira idade, a biografia tem entre nós uma tradição remota, que se modernizou no séc. XIX com o último Alexandre Herculano, o da História da origem e do estabelecimento da Inquisição em Portugal, e atingiu a plena maturidade nos trabalhos monográficos de Oliveira Martins.
Uma literatura que teve um retratista tão opulento como Martins não se pode queixar de falta duma genealogia moderna. Grande dramaturgo dos quadros da História colectiva, poderoso escultor das vidas individuais, verdadeiro Plutarco do nosso tempo, o autor do Portugal contemporâneo justificou por si só o surgimento de toda uma literatura posterior que bateu na sua esteira e se elevou a cristas muito altas. Tome-se como ponto de arranque as magistrais caricaturas de Fialho de Almeida, algumas insuperáveis, como a de Eça e a de Guilherme de Azevedo, e prossiga-se com os vastos frescos sociais que Raul Brandão deixou do Portugal do início do séc. XIX, o das invasões francesas, o do protectorado britânico, o das ideias revolucionárias, e Pascoaes multiplicou alucinadamente numa roda-viva de épocas e de figuras, que vão de Paulo de Tarso a Napoleão e a Camilo.
Nenhum biógrafo soube como ele insuflar o fogo da paixão nas suas personagens e nenhum outro teve o seu poder poético de reconstituição. Bastava-lhe uma imagem para dar um ambiente. Era um taumaturgo. O seu verbo galvanizava qualquer cadáver; qualquer ruína voltava à vida ao sopro da sua palavra.
O último exemplo desta biografia inspirada, caudalosa e apaixonada é a de Agustina Bessa-Luís. Depois dela a biografia em Portugal desceu dos altos picos alpestres por onde passeou altiva e soberana a nudez e a força da sua beleza para se amortalhar num subterrâneo frio. Hoje o figurino académico que por aí se vê e a que se chama biografia nada tem a ver com a poderosa dama que outrora, há cem anos, fez uma parte da glória da literatura portuguesa.
Ricardo Saavedra acaba de nos dar uma biografia do décimo sexto Dalai Lama, Tenzin Gyatso, nascido numa zona rural do Tibete em 1935 com o nome de Lhamo Dhondup. Não digo que o nobre modelo biográfico do passado esteja de regresso com este trabalho de Saavedra. Falta-lhe com certeza uma parte daquilo que fez a grandeza da melhor literatura portuguesa que vai de Martins a Agustina para assim ser. Atrevo-me porém a dizer que o autor teve na mão e agarrou aquilo que muitos biógrafos hoje dificilmente conseguem – uma vida que mereça ser biografada. Um dos enganos da biografia dos dias de hoje reside no facto de se pensar que todas as vidas são biografáveis. Não são. Do ponto de vista que aqui nos interessa, o poético, a matéria biografável é rara. Oliveira Martins, Raul Brandão, Pascoaes e Agostinho da Silva escolheram a dedo os seus biografados. Só vidas excessivas lhes interessaram. Pode ser-se um grande escritor, sem se ter uma vida biografável. Pode ser-se um Lama, um Papa, um rei e não se ter senão uma vida medíocre. Não basta o reconhecimento da História para se ter uma biografia. É preciso que essa vida tenha biografemas, matéria relevante para o relato, motivos que saiam da sombra irrisória em que a vida vulgar se afunda. Saavedra soube escolher o seu biografado. O menino que veio ao mundo em Taktser e quatro anos depois foi reconhecido como Dalai Lama teve uma vida que merece ser conhecida. Viveu uma tragédia rara, a ocupação chinesa do Tibete, que ele soube enfrentar até aos dias de hoje, em sucessivas etapas, com a atitude firme e serena dos seres fortes e superiores e em que o prémio Nobel de 1989 não é senão um pormenor. É uma figura trágica e ao mesmo tempo heróica como raras vezes a História dá! Assistiu ao fim do seu povo e sem se deixar abater soube preparar para ele o renascimento. Foi um Dom Sebastião mais consciente, menos pueril, e por isso ainda mais digno do relato e do mito!
Ricardo Saavedra foi o primeiro jornalista português a subir a Dharamsala e a recolher da boca do Dalai Lama valioso material biográfico. Não foi assim difícil ao autor traçar um retrato entusiasmado da sua personagem, dando-nos um livro convincente e honesto, que presta um inestimável serviço a uma das culturas mundiais que mais se internacionalizou no último meio século e que terá com certeza no futuro uma palavra decisiva a dar no surgimento dum paradigma civilizacional que nos evite soçobrar no colapso para o qual caminhamos hoje a passos largos.
António Cândido Franco
(*) Professor da Universidade de Évora
N. R. – Este artigo sobre “biografia literária” do professor A.C.F., vem a propósito do lançamento do livro — “Peregrino da Liberdade — Dalai Lama XIV”, da autoria do escritor e jornalista Ricardo de Saavedra —, devia antecipar a apresentação desse livro realizada no dia 8 (quarta-feira) p.p., na Livraria Bertrand do “Centro Comercial das Antas – Shop & Shop”. Porém, aconteceu não ter havido edição deste semanário na semana do 1º de Maio. Fica, contudo, o registo da participação, nessa apresentação do professor Paulo de Morais e do médico budista indiano Balkrishna Maganlal, nascido em Moçambique, com consultório no Porto e, em tempos, em Caminha, bem como de Francisco José Viegas, director e editor da Quetzal (editora do livro).