Vacinação, Cena Primeira, Segundo Ato

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Uma coisa que todos os atores e atrizes ouviram muitas vezes ao longo da sua formação de base é que como artistas têm que ser observadores. Muito observadores. E, de facto, ainda ecoam na minha memória as vozes de diferentes professores: “Quando estiverem numa esplanada, olhem para as pessoas! Para a forma como andam, como agem, como falam.

O ator tem que ser um observador!”. Pois foi esse espírito observador que revisitei quando, recentemente, fui receber a minha segunda dose de vacina: Depois de ser inoculado, segui para a “Área de Espera de 30 Minutos” e sentei-me. E foi exatamente nesse momento silencioso (que me parece muitíssimo teatral) que, sem querer, comecei a recordar os reptos dos meus professores. Então, comecei a observar e a fazer notas mentais: “Ambiente assético e rigoroso. Pessoas correspondem sem hesitar ao que lhes é indicado.

Parece cena de livro do Orwell. Deve ser um fartote para os adeptos de teorias da conspiração…”. E estava nisto. Mas interrompi o meu exercício de observação quando comecei a reconhecer pessoas “do meu tempo” ou, como gosto de dizer, “da minha criação”. E, sem dar conta, parei de observar e retomei o corriqueiro processo mental através do qual estamos sempre a ajuizar o que nos acontece: “Olha aquele… pois é! É o…

Como é que ele se chama? Está quase careca.”. E, assim, ato contínuo: “E a Sónia! Era tão gira! A idade não a ajudou muito…”. E continuei a olhar, ao mesmo tempo que constatava que todas as pessoas pareciam mais velhas que eu. Incluindo aquelas que não conhecia. E, convencido que ainda estava a observar, ia a caminho de me sentir satisfeito com a constatação quando, de repente, reparei num tipo que foi da minha turma no “secundário” e que me acenou, como que a dizer “Cá estamos!”. Foi quando fiz uma pausa. E deixei de ouvir a voz dos meus professores. Olhei de novo à minha volta e perguntei mentalmente: “Será que eu também estou assim?”. E devo ter tido medo que alguém me viesse dar a resposta no fim dos 30 minutos de espera, porque vim logo embora.

 

Ricardo Simões

Diretor Artístico do Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana

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