É de política que vou falar.
E, despudoradamente, de mim também. Digo-o, desde já, para que não se sintam induzidos a uma leitura que não querem. Podem parar por aqui.
Sou já um sexagenário. Com os sessenta feitos há um ano. Em 1974 fiz os meus quinze anos já depois de Abril. Tive o imenso privilégio de viver um ambiente de mudança profunda do país no cerne da juventude. Não tive de escolher entre a emigração/exílio ou a guerra colonial, como alguns dos meus cinco irmãos mais velhos. Dois foram para França e um deles combateu em Angola. Os outros dois estiveram na tropa antes da guerra.
Vivi muitos desencantos com os caminhos que a nossa história foi tomando.Senti orgulho em muitos avanços sociais. Aprendi a viver em liberdade e a valorizar a democracia, ela própria instrumento fundamental da liberdade. Adquiri muito cedo a consciência de que a liberdade e a democracia estão profundamente diminuídas por muitas desigualdades e por muitas dependências, quantas vezes aviltantes! Mas se há algo muito claro para mim, é que não podemos nunca ceder ao impulso de que prescindir da liberdade e da democracia pode ser o caminho para melhorá-las.
Também fui notando que, não poucas vezes, a corrupção que tende a germinar sob diversas formas no meio de grandes e de pequenos poderes, nos mais diversos regimes políticos, tem um efeito suficientemente perverso ao ponto de ser capaz de se reproduzir mais forte entre os que a tomam como principal bandeira diferenciadora. O que significa que é frequentemente usada como causa que atrai para mudanças políticas que, embrulhadas na luta anticorrupção, não só não acabam com a corrupção como lhe acrescentam muitas mais injustiças e atentados à liberdade e à dignidade das pessoas. Veja-se o recente exemplo brasileiro como paradigmático.
Isto aqui para nós, diga-se o que se quiser, mas é bom de ver que a política, como assunto sério e responsável, é uma carga de trabalhos. A verdade é essa! A maior parte de nós prefere ficar de fora, na bancada, e usar da sua sapiência, quantas vezes completamente desinformada, para apontar o dedo a tudo e a todos. Participar com sentido de cidadania é coisa que evitamos, vezes sem conta, com a sobranceria declarada ou implícita de que somos pessoas limpas e a política é sempre suja. E esse discurso multiplica-se, vulgariza-se, toma conta da forma como vemos tudo, desabituamo-nos de olhar para factos e tentar percebê-los, passamos a estar sempre à espera, exclusivamente, dos factos que confirmam a nossa verdade simples, suja e cómoda, que sustenta convicções firmes e dispensadas de esforço.
Depois aparecem uns Adolfos, ou uns Antónios ou, já numa escala de sucedâneos de patamar inferior, uns Andrés… Pouco importa o nome, pouco importa a estatura intelectual ou política da personagem… Importa que é alguém disposto a fazer um caminho de retrocesso civilizacional, no que a civilização tem de ganhos de dignidade humana, liberdade e respeito pelas diferenças. Começam por fazê-lo dentro das regras do jogo. Com muitas críticas razoáveis à mistura. Sem contornos ideológicos nítidos para a maior parte das pessoas. Sempre a dizerem o que muita gente gosta de ouvir. Depois vão acentuando as marcas do seu caminho. Vão tentando mostrar força. É repetição histórica tentarem mostrar força antes do tempo. Quando ainda não a têm… Um misto de ansiedade e teste, talvez. Subestimá-los é um erro que pode sair caro. O contrário pode ajudá-los. Não estamos a lidar com uma pessoa. Estamos a lidar com um fenómeno mais amplo. A pessoa que o personifica em determinado momento até pode ser apenas instrumental e transitória.
Certo, certo, é que a democracia precisa que lidemos com este fenómeno com inteligência e redobrada participação cívica.
Carlos da Torre