O presente texto consta da obra “A romaria da Sr.ª da Agonia: vida e memória da cidade de Viana”, edição do Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos ENVC, e surge como complemento e análise aos conteúdos da mesma. Trata-se de uma peça que, depois de uma longa e profunda investigação, procura, desapaixonadamente e na base do rigor, tratar a dimensão da nossa Romaria, a todos os níveis, ao longo de mais de dois séculos. Faz o remate perfeito de um livro que, com mais ou menos intensidade, consumiu três anos de pesquisa e estudo. Hoje, esgotado e muito procurado, particularmente para ensaios académicos e palestras, está necessitada de uma reedição com pequenos ajustes e, eventualmente, novos complementos. Fica a proposta ao editor e a um eventual parceiro.
Decerto não há cidade alguma em Portugal cujas festas tenham o sentido pleno, a um tempo denso e exaltante, que em Viana têm as Festas da Senhora da Agonia. Sobretudo desde o último quartel de Oitocentos, falar de Viana é antes de mais nada falar das suas Festas. Nelas projetou a Cidade uma contínua e obsessiva vontade de afirmação histórica e um sempre renovado desejo de progresso.
Por largo tempo contidas às portas de Viana, as Festas da Agonia eram, por essa época, uma imponente feira, que nos espaços contíguos à igreja da Agonia misturava os mais efervescentes e capitosos sabores: o ar empertigado dos burgueses, com um povinho de pescadores e camponeses, muitos dos quais vinham a banhos; os foguetes, os zabumbas e as tocatas, com as melancias, o gado vacum e cavalar e os comes e bebes; os repiques dos sinos e as touradas, com os cabeçudos e os derriços de namorados; os acordes dos harmónios e das concertinas, com os volteios de dança e os descantes.
Em finais do seculo XIX, a Romaria da Agonia espraia-se pelas margens do Lima e chega ao centro da Cidade, à Praça da Rainha. Ganha a sociedade elegante do Jardim Público, que pavoneia a sua “superioridade” em passeatas ribeirinhas, regatas e provas hípicas. E, num repente, as elites locais, tanto políticas como culturais, convertem-na num insubstituível instrumento de afirmação de Viana no contexto regional, e também numa majestosa liturgia de afirmação social, com a sociedade vianense posta em sossego, frente à imagem da sua rigorosa ordenação, com os lugares, os poderes e as prerrogativas sociais distribuídos segundo uma hierarquia estrita.
Periférica em termos nacionais e acertando o passo, no contexto regional, por cidades de maior dimensão, de pequena malha urbana, de reduzidos recursos económicos e com uma endémica sangria emigratória, Viana só se fez verdadeiramente grande nas suas Festas e por via delas. As Festas da Agonia são a rebelião de uma Cidade contra um destino comum.
Vogando tantas vezes como pequena nau num mar de tormenta, Viana atravessou ciclos de retração e de crise: viveu em sobressalto a Revolução Liberal, o estertor da Monarquia e os altos-e-baixos da República; sentiu na carne os apertos provocados pela instalação do Estado Novo; estremeceu e duvidou com as sombras da Guerra Civil Espanhola, da II Guerra Mundial e da Guerra em África; hesitou com o 25 de Abril. Mas não mais pôde dispensar as suas Festas: à agonia da noite mais escura, Viana sempre soube arrancar a clara luz de uma “senhora da alegria”. Nas suas Festas e através delas é que Viana vive.
Foi o imaginário festivo que fez a Viana moderna. No sonho, na emoção estética e na magia da Romaria da Agonia construiu Viana a sua identidade, a de uma princesa, que ao mundo se dá em festa, vestida de lavradeira. Quando o presente parecia não comportar qualquer ideia de futuro, Viana fez-se forte através de uma geografia de lugares do passado: os seus costumes rurais e marítimos; os trajes tradicionais; os cantares e as danças populares. E à falta de outros recursos, sobraram os naturais. Para ganhar o mundo, Viana contou com o mar, o rio, a montanha e as suas mulheres, resplandecentes de ouro e de pano polícromo. As Festas da Agonia surgiram então como o emblema, o chamariz e a vitrina da Cidade e da região de Viana do Castelo. As Festas são Viana em festa, mas são sobretudo a porta aberta da região de Viana para o mundo.
Quando nos anos trinta do século XX, o Estado Novo projetou a ideia de um país que era um puro passado, um país antigo, cristão, tradicional e humilde, feito de temperamento rural e, paradoxalmente, herdeiro de um destino colonial e de uma missão civilizadora, Viana viu ali o seu destino e calçou-o como uma luva, exibindo-se perante a nação como sua metáfora, e simultaneamente como sua metonímia. Se o país se projetava no seu passado, a ponto de toda a sua grandeza constituir uma espécie de repetição do já feito e do já sido, Viana em festa era o exemplo vivo dessa tradição: por um lado exaltava a concórdia de um “país-aldeia-rural”; por outro lado, figurava o imperium dos novos mundos que a “pequena casa lusitana” dera ao mundo. Viana em festa foi então a dona de casa rural com “sonhos de caravelas”, que o regime fantasmara. E o país, que pelos bailes proclamava as suas raízes, aplaudia, em apoteose, essa imagem que de si mesmo era dada em Viana. Nas paradas folclóricas, etnográficas e históricas, em cortejo pelas ruas ou em desfile em cima dos palcos, Viana era o país.
Foi nesses anos que as Festas da Agonia se impuseram como a “romaria das romarias de Portugal” e Viana como “a capital do folclore”. Simultaneamente metáfora e metonímia do país, Viana não mais poderia deixar de se cumprir em festa.
Martins, Moisés de Lemos (2000). Viana cumpre-se em festa. In Martins, M. L.; Gonçalves, A.; Pires, H., A romaria da Sr.ª da Agonia: vida e memória da cidade de Viana (pp. 139-141). Viana do Castelo: Grupo Desportivo e Cultural dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.