XL. DELVAUX

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Américo Carneiro

Este é outro dos mais famosos auto-retratos do Séc. XX. Na cena apresentada, o autor surge do lado esquerdo, saindo do que poderia ser o pórtico de um jazigo, parecendo assomar de uma dimensão para penetrar noutra, de uma diferente natureza. Sai, vestido de fato, usando gravata, bem penteado, num registo temporal que é o da sua contemporaneidade, entrando numa realidade alternativa, intemporal. É de noite, a protectora dos sonhos, dos amantes, das visões proféticas e da libertação dos instintos, dos impulsos e do subconsciente.

   Nesta “cidade adormecida”, que parece de dimensões imensas e se desenvolve até às montanhas de feições fantasmagóricas do fundo, iluminadas pelo luar, movimentam-se ou aquietam-se, em características poses do Classicismo Greco-Romano, belas mulheres jovens e nuas, com um ar intensamente enigmático e mitológico. Mudas e distantes, parecem comunicar connosco através dos seus corpos.

   Duas, à esquerda, parecem receber o autor: – Uma, com o corpo revestido de folhagem fresca (um registo recorrente em Delvaux), pode simbolizar a vida e o nascimento; a outra, velada e coberta com um manto cor-de-terra, talvez represente a morte. Juntas, chamam-nos a atenção para esta dualidade inseparável das nossas existências: o que nasce, deve morrer. A figura que se apresenta em primeiro plano, à direita (e de costas viradas para o autor), parece meditar sobre estas coisas junto a um oratório (?) onde se acende uma vela na escuridão reinante. Também a nós, seus observadores, ela parece ignorar, sendo impossível encontrar o seu olhar.

   Ao centro, a alguma distância, uma figura jovem e bela vai despindo o manto, os cabelos entretecidos com flores e folhagem, a caminho de um possível amor. Mais distante ainda, já por entre as árvores, uma mulher vestida de ramagens leva uma outra vela acesa (maternidade?) a alguém que já a espera de braços estendidos.

   Já contra “as portas da cidade” parece haver uma luta corpo-a-corpo (por poder? por glória?), enquanto outros devaneiam por ali, e, já dentro da cidade, muitos assistem, imóveis, ao desenrolar de todas estas cenas.

   O apelo ao classicismo, a omnipresença de edifícios estranhos com suas fachadas intemporais, fantasmagóricas, a estranha iluminação do quadro, artificial, a coexistência do auto-retrato do autor com figuras de intenso simbolismo, misteriosas e intemporais, remetem-nos para o Surrealismo, mas também para os programas propostos por Giorgio de Chirico e a “Pintura Metafísica” (V., p.f., o artigo “II. De Chirico”, na rúbrica “Amados Quadros” d`”A Aurora do Lima” N.º 37, Ano 167, de 4.11.2021). 

   Paul Delvaux, nascido belga como seu companheiro René Magritte, tal como este e desde o início dos anos 30 quis recriar através da sua arte o vasto mundo dos sonhos e do subconsciente. Por isso, abraçou o Surrealismo, depois de ter começado por abraçar o Impressionismo e ter adoptado o Expressionismo durante algum tempo. E tal como seu compatriota Magritte, também ele foi um virtuoso e um tecnicista, valendo-se genialmente disso para devolver à Humanidade muito de tudo aquilo que lhe é mais caro e que lhe é mais precioso, num portentoso Hino à Liberdade e à Criatividade.

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