Gil Eannes – 25 anos passados

Author picture

Foi com muito agrado que li o recente livro do Dr. Defensor Moura: “Gil Eannes – Regresso a casa”. Tendo acompanhado de perto todo o processo, fiquei surpreendido com o detalhe, o rigor e a emoção posta na descrição dessa difícil odisseia, que só a sua persistência e querer podiam levar a bom porto. Tocou-me, particularmente, o desabafo da contracapa: “Confesso que fiquei chocado e completamente desalentado ao ver à minha frente aquela carcaça enferrujada”. Lembro-me bem desse momento, quando na primeira visita nos dirigíamos ao navio, através do lamaçal que lhe dava acesso, no sucateiro em Alhos Vedros. Senti o mesmo, olhei para D.M., vi-o gelado, mas não disse nada. A minha primeira reação foi uma enorme vontade de “desandar” e voltar para Viana. Só recentemente lho disse.

Tinha sido incumbido pela administração dos ENVC de acompanhar o Presidente da Câmara e dar o meu parecer técnico sobre a viabilidade da recuperação. Ao contrário de D.M., que durante a viagem para Alhos Vedros ia contando as recordações que tinha do G.E., com emoção, a minha postura era sobretudo profissional de quem ia numa missão técnica e, confesso, a quem o G.E, na altura, não dizia muito. Não era da Cidade, muito menos da Ribeira e a ligação que tinha ao navio era através das histórias que ouvia de trabalhadores que tinham participado na sua construção nos ENVC, mas nada de muito emocionante. Consciente da responsabilidade que levava nos ombros, perante aquele panorama, hesitei entre dar o parecer mais óbvio e racional, que seria descartar a possibilidade de recuperação e assim defraudar as expectativas de muitos e, sobretudo, de D.M., que já eram grandes, ou arriscar um parecer positivo, com os riscos daí resultantes.

Ao percorrermos o interior do navio, à luz de lanternas, íamos verificando a degradação resultante do completo abandono de muitos anos e do vandalismo que era evidente em todos os espaços. Apesar de tudo, o aspecto geral da estrutura era razoável. Sabia de dois pormenores importantes que me davam alguma confiança. Tratava-se de um casco reforçado para operar no Ártico podendo, entre as suas múltiplas funções, funcionar como rebocador desencalhando navios de pesca bloqueados pelo gelo e, a maior parte dos tanques de lastro do duplo fundo, os grandes responsáveis pelo fim de vida dos navios ao fim de 15 a 20 anos quando não devida e periodicamente tratados contra a corrosão, ao contrário do habitual, nunca levaram água salgada. Mais uma vez as características especiais deste navio e outra das suas valências, o abastecimento de água doce aos navios da pesca, que levaram à utilização destes tanques para essa função, foram determinantes para o seu estado, apesar dos maus-tratos. A qualidade dos materiais e da construção nos ENVC eram também uma garantia. Dizia o meu saudoso amigo José Ramos, colega de trabalho de muitos anos nos Estaleiros, que tinha participado no projeto do G. E. como desenhador: “Ah…, o Gil Eannes foi construído com Aço do Bom…”. Referia-se ao facto de o aço e os equipamentos principais serem americanos, uma vez que o navio tinha beneficiado do Plano Marshall, de ajuda a países europeus no pós-guerra, que obrigava à utilização de materiais dessa origem.

Concretizada a compra, superadas as grandes dificuldades relatadas no livro, faltava o mais difícil, que era transformar “aquela carcaça enferrujada” em algo visitável e atrativo. Deu-se a feliz coincidência de serem administradores dos Estaleiros dois engenheiros muito sensibilizados para a causa, Francisco Laranjeira, um vianense, que ao longo dos anos dinamizou também a  exposição de diversas peças das primeiras construções, nas áreas ajardinadas dos Estaleiros, criminosamente vendidas para a sucata pela administração liquidatária dos ENVC, e Duarte Silva, cujo pai foi administrador da SNAB, proprietária do navio São Tiago, inaugurado nos ENVC no mesmo dia do Gil Eannes, amadrinhado pela “famosa” Gertrudes Tomás (sendo madrinha do G.E. a Sra. Craveiro Lopes).

Embora balizados pelos condicionalismos financeiros da empresa e pelo seu estatuto de empresa pública, deram-me “carta branca” para tratar do necessário para pormos o navio visitável, tendo liberdade para utilizar toda a logística da empresa, grande parte dos materiais necessários, todos os consumíveis, e recorrer à colaboração graciosa dos subempreiteiros e fornecedores que achasse que poderiam contribuir. Foi assim que, com a colaboração preciosa do experiente e entusiasta orçamentista e coordenador de reparações Gabriel Amorim, lançámos mãos à obra. Começámos por listar os trabalhos a fazer e, uma vez que conhecíamos bem as capacidades e possibilidades de cada subempreiteiro, distribuímos, no papel, as tarefas a atribuir a cada uma das 25 empresas que achávamos estarem em melhores condições de contribuir com a mão de obra e/ou os materiais necessários. No papel estava feito, faltava o resto, convencer as pessoas…

Começámos pelo que nos parecia o mais complicado, dada a magnitude da tarefa. Telefonei ao Sr. Fernando Oliveira, dono da Montaco e, com algum receio da resposta, disse-lhe que contávamos com ele para a decapagem e pintura integral do casco do Gil Eannes (as tintas foram oferecidas pela Hempel). Surpreendentemente a resposta não poderia ter sido mais positiva e, animados por este sucesso, contactámos as outras 24 empresas. Sendo certo que, umas com mais entusiasmo do que outras, não tivemos nenhuma recusa e o plano que tínhamos traçado no papel foi “seguido à risca”. As empresas em causa foram as seguintes:  Afonso & Rocha, Amorim & Marques, Caravela & filhos, Carpintaria Cardielense, Carpintaria do Pinheiro, Carvalho da Costa, Cedência Mais, Costa & Rego,, Departamento de Pilotagem, Electricidade Geral, Electro Coi, Forpescas, Grupo Sobreiros, Hempel, International Paints, Magalhães & Magalhães, Manuel & Albano Meixedo , Metaldarque, Metalo-eléctrica, Montaco, Montinorte, Poliaço, Simi, Tinita, Tintas e Pinturas, Unitor, Vieira & Carmo.

No livro, D.M. relata bem as dificuldades em obter os 58 000 contos para a compra do navio ao sucateiro, apesar dos contributos que conseguiu de alguns organismos do estado. Nesta intervenção, nos 4 meses em  que o navio esteve nos Estaleiros, de fevereiro a junho de 1998, fizeram-se trabalhos no valor de 72 667 contos,  o que demonstra bem o quão valiosa foi a contribuição dos estaleiros e das empresas referidas, injustamente, não devidamente divulgada na altura, por tudo se ter passado intramuros ENVC mas,  melhor tarde do que nunca, aqui fica o testemunho.

António Santos Lima

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.