Os amigos

José Veiga Torres
José Veiga Torres

Há discursos só possíveis como monólogos, porque não têm outro fundamento senão o da experiência própria, mesmo quando também é refletida sobre experiências monologadas de outros. São discursos sobre experiências, onde a razão escasseia de razões. 

O discurso acerca da amizade é um desses: só pode ser um monólogo. Não poderá, nunca, obter unanimidade de assentimento, porque as experiências pessoais são tão diversificadas que não esgotam todas as possíveis perspetivas das misteriosas relações humanas, em que a amizade nasce e cresce. A experiência deste monólogo encontrou algumas dessas perspetivas, significativamente, expressas em experiências alheias. Jean de la Fontaine desconfiava dos que se diziam amigos. Considerava tão banal a atitude de se dizer amigo, que seria loucura acreditar neles. A amizade era, em seu entender, coisa muito rara. Machado de Assis dizia que «não é amigo aquele que alardeia a amizade, é traficante; a amizade sente-se, não se diz”. Creio que a maioria das pessoas concordaria com Jean de la Fontaine e com Machado de Assis.

A desconfiança sobre os que se dizem amigos mostra-nos a importância que os humanos dão ao que chamam “amizade”, tanta importância que a consideram uma raridade. A desconfiança revela-nos a força do seu inverso, o que caracteriza a relação da verdadeira amizade: a confiança. A confiança é a concessão de total crédito mútuo, numa relação de fé mútua, verdadeira.

Há quem pense que se reconhecem dois amigos, quando, estando juntos não precisam de se falar. Os estranhos precisam de tagarelar para se fazerem notados e reconhecidos. Se é verdade que os amigos não precisam de se falar, é porque o seu silêncio não é um vazio, mas uma plenitude, uma «solidão livre da angústia da solidão» (Dag Hammarkskjod), um silêncio que é fruto de muita fala e, sobretudo, de fala verdadeira. Com estranhos, nunca se tem a certeza da completa verdade do que dizem. Com os que se dizem amigos, não se está plenamente seguro da certeza do que nos dizem. Mas os amigos verdadeiros não podem admitir, de modo algum, qualquer incerteza sobre o que se dizem. Mesmo quando discordam. Não precisam de concordar. Na sua relação pessoal, falada ou silenciosa, tudo é verdadeiro, tão verdadeiro que até os defeitos de cada um se dizem e se aceitam mutuamente, talvez até com uma gargalhada. Óscar Wilde chegou a dizer que «a melhor maneira de começar uma amizade é com uma boa gargalhada». Pascal dizia que «o amor é cego, mas a amizade fecha os olhos», pelo que «amizade é mais prudente que o amor, dispensa os juramentos» (Maurice Chapelan). Alguém dizia que há «duas espécies de chatos: os chatos propriamente ditos e os amigos, que são os nossos chatos prediletos» (Mário Quintana). Os amigos verdadeiros podem ser chatos, podem ser muito diferentes, em temperamento, em ideologia, em crenças, em estatuto cultural e social. «A amizade pode existir entre as pessoas mais desiguais, pois ela os torna iguais» (Aristóteles). O cimento da amizade na desigualdade é a confiança mútua. A amizade não exige a presença permanente, mas exige-a no momento em que é indispensável. Confiança e verdade são irmãs siamesas. A morte da amizade passa pela mentira, pela mentira da palavra falsa, ou pela mentira da atitude da ausência no momento em que a presença era indispensável. A amizade ou era falsa ou desapareceu, quando se faltou ao amigo caído em desgraça, ou quando se distanciou por se tornar poderoso. Por isso, a experiência de Confúcio levava-o a dizer que «para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça; no sucesso verificamos a quantidade e na desgraça, a qualidade».

Como se chega à amizade? – «As pessoas entram na nossa vida por acaso. Mas não é por acaso que elas permanecem» (Lilian Tonet). «A gente não faz amigos, reconhece-os» (Garth Henrichs). Nós, os humanos, somos chamados à vida, sem que o tenhamos programado e sem nos pedirem consentimento. Somos chamados por outros, como um fruto da convivência. Somos chamados à vida, mas não para qualquer vida, não para qualquer modo de viver. Somos chamados para conviver como humanos, isto é, para um modo de ser criativamente convivial, responsável, amigo e feliz. Este ideal, o da vocação humana, nem sempre é possível de realizar-se, e nunca é fácil. Os humanos têm a capacidade de faltar à confiança, de abusar dela e de mentir, degradando a convivência. Fala-se da degradação da convivência humana como uma inevitabilidade, ou lei natural, dizendo que é, assim, a “natureza humana”. Não, não é! O ideal da vida humana, como objetivo da vocação humana é a amizade verdadeira, socialmente o mais alargada possível. Poderá considerar-se uma raridade, mas existe, é possível, e deve procurar-se.

Madre Teresa de Calcutá descrevia a verdadeira amizade como «não se consentir que alguém saia da nossa presença sem se sentir melhor e mais feliz». Foi-me possível escrever este despretensioso monólogo, em homenagem a um grande amigo e colega,  de cuja presença não saía sem me sentir melhor e mais feliz, e de cuja presença comunicativa, infelizmente, já não posso usufruir.

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