Um facto político

A. Lobo de Carvalho
A. Lobo de Carvalho

Está subjacente a um qualquer poder político instituído criar, deliberadamente, factos políticos para desviar a atenção dos media e dos cidadãos de algumas matérias que não estejam a concretizar-se de forma favorável. Poder-se-ia chamar, em termos militares, uma manobra de diversão. Como em política nada acontece por acaso, enganam-se aqueles que pensam o contrário, porque existem especialistas atentos a todas as situações, com soluções pensadas para cada especto considerado importante, no momento próprio.

No meu ponto de vista, o caso mais recente no país foi o de o Ministro das Infraestruturas ter assinado e mandado publicar um despacho do governo sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa, cuja indefinição se arrasta há dezenas de anos. Tratando-se de uma matéria tão relevante, deveria a sua publicação ter sido ordenada pelo Primeiro-Ministro, coisa que não terá acontecido e, por isso, acabou por ser revogado. 

Este desentendimento foi aquilo de que nos quiseram convencer, mas tenho dúvidas que corresponda inteiramente à verdade. E não deixa de ser curioso verificar como comentadores políticos e imprensa em geral foram atrás do engodo, porque estou convicto de que esta situação foi devidamente ponderada, pensada e executada com um único objetivo. De resto, veja-se a rapidez com que o Ministro foi desculpabilizado pelo Dr. António Costa, como se nada tivesse acontecido.

O que, verdadeiramente, se passa, é que o governo vem somando incontáveis e fortes críticas pelo mau funcionamento e desempenho do Serviço Nacional de Saúde, existindo graves problemas de assistência médica por falta de médicos especialistas e outros meios humanos em quase todos os hospitais do país, originando situações alarmantes como nunca se viu. Claro que esta situação causa alarme social, que ultrapassa as fronteiras, mais ainda porque atravessamos um período de grande mobilidade dos cidadãos, decorrente da atividade turística, arrasando por completo os serviços hospitalares, designadamente as urgências. A isto junta-se o péssimo funcionamento nos aeroportos, com problemas a todos os níveis para os utentes, que suscitam críticas e avaliações altamente negativas.

É o país em grande instabilidade numa vertente muito sensível, como é o caso da saúde, a que acrescem consequências gravosas no nível de vida por causa da guerra na Ucrânia, cujos estilhaços atingem as economias dos países da União Europeia (EU), em geral, e os cidadãos, em particular, com uma inflação galopante e dificuldades de toda a ordem.

Perante esta realidade, altamente desgastante para o governo da República, que tem mobilizado a comunicação social nas suas críticas, havia que desviar as atenções do caótico SNS para outros assuntos também eles na ordem do dia, como é o caso do funcionamento dos aeroportos.

E para conseguir estre desiderato, nada melhor do que criar um facto político, neste caso tendo o “rebelde” Ministro das Infraestruturas como protagonista, ao publicar “à revelia” o despacho do governo sobre a nova localização do aeroporto de Lisboa, exatamente num momento em que (para conferir mais ênfase) o Primeiro-Ministro estava no estrangeiro, o que seria entendido como uma falta de lealdade!  Foi, na verdade, o que o governo precisava para ter toda uma imprensa, ávida de broncas, a explorar a matéria até à exaustão, quase esquecendo os problemas do SNS. 

Penso que o Ministro das Infraestruturas é inteligente, dedicado e sabe até onde pode ir. Não cometeria o erro, certamente, de se apoderar de uma competência do Primeiro-Ministro, tanto mais que este estava ausente do país, para mandar publicar um despacho do governo. O Presidente da República é que parece ter sido mesmo apanhado desprevenido, mas, como já se viu pelas reações, perdões e sorrisos de todos os envolvidos, a alegada crise no governo já lá vai e a localização do novo aeroporto de Lisboa vai continuar a ser o centro das atenções.

Na minha ótica, tudo isto terá sido combinado entre os governantes em causa, exatamente para desviar as atenções dos gravíssimos problemas do SNS, e não temos de nos surpreender, porque é próprio da arte política. Criou-se um facto político, grave apenas na aparência. O Primeiro-Ministro mantém o seu sorriso otimista e o Ministro das Infraestruturas não se demitiu nem foi demitido, continuando feliz e contente no seu posto. Se não tivesse sido assim, como poderia o PM manter no governo um ministro que o desautorizou? Por muito amigos que sejam, a quebra de confiança obrigaria a demiti-lo. Não que me interesse a sua demissão, porque o importante é resolver os problemas do país.

Mas como a vida política é uma sucessão de casos, mais um facto está agora sobre a mesa, este envolvendo o presidente brasileiro e o nosso, em que não faltarão jornalistas, comentadores e afins a esmiuçarem esta insólita situação, enquanto que outros graves problemas perderão a atenção dos media.

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