VI- Goya ainda, “O 3 de Maio de 1808” comentado pelo Poeta Jorge de Sena

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Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya 

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. 

É possível, porque tudo é possível, que ele seja 

aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, 

onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém 

de nada haver que não seja simples e natural. 

Um mundo em que tudo seja permitido, 

conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, 

o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. 

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto 

o que vos interesse para viver. Tudo é possível, 

ainda quando lutemos, como devemos lutar, 

por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, 

ou mais que qualquer delas uma fiel 

dedicação à honra de estar vivo.

(…)

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém 

vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. 

É isto o que mais importa – essa alegria. 

Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto 

não é senão essa alegria que vem 

de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez 

alguém está menos vivo ou sofre ou morre 

para que um só de vós resista um pouco mais 

à morte que é de todos e virá. 

Que tudo isto sabereis serenamente, 

sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, 

e sobretudo sem desapego ou indiferença, 

ardentemente espero. Tanto sangue, 

tanta dor, tanta angústia, um dia

– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –

não hão-de ser em vão. Confesso que 

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos 

de opressão e crueldade, hesito por momentos 

e uma amargura me submerge inconsolável. 

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, 

quem ressuscita esses milhões, quem restitui 

não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? 

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes 

aquele instante que não viveram, aquele objeto 

que não fruíram, aquele gesto 

de amor, que fariam «amanhã». 

E, por isso, o mesmo mundo que criemos 

nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa 

que não é nossa, que nos é cedida 

para a guardarmos respeitosamente 

em memória do sangue que nos corre nas veias, 

da nossa carne que foi outra, do amor que 

outros não amaram porque lho roubaram. 

Lisboa, 25/6/1959                         

Jorge de Sena, in “Poesia II” (Edições 70, Lisboa, Ano de 1988). 

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